Esta noite quando fui dormir, fui invadido, estranhamente, por um medo muito grande do escuro e da morte. Estava muito agitado e rolando na cama, com os lençóis se enrolando em meu corpo e que impacientemente ia chutando.
Dormir se tornou uma tarefa quase impossível dada a ansiedade em que me encontrava. Há muito que não a sentia tão forte e intensamente. Procurei no fundo da caixa dos meus problemas a razão dessa inquietude e por mais que me esforçasse sempre acabava concluindo que “estava tudo bem”.
Mas alguma coisa, muito forte, estava ali me incomodando, praticamente gritando para mim, fazendo a inquietação do meu espírito crescer, turbilhonando minha cabeça em uma tempestade de memórias, misto de passado e presente. Mesmo assim me dispus a dormir para por paz no meu quarto e mente.
Uma saudade me lembrou da técnica de contar carneirinhos para dormir. Apenas, sorri um sorriso nostálgico à idéia. Nem tentei.
Subitamente comecei a ouvir os “tic tacs” familiares do pêndulo de um relógio, que não se encontra na parede da minha sala. O som hipnótico dos segundos me fez dormir e então sonhar.
Era uma manhã de verão esbranquiçada de luz em um fundo de quintal com jabuticabeiras. Quieta e ainda morna.
Prestando a atenção percebi um agito contínuo em uma das árvores indicando que ali havia alguma atividade. De repente quietude e então uma rajada de cascas sendo cuspidas e então a jabuticabeira se agitava mais ainda. Isso transcorreu longa e repetidamente.
Latidos de cachorro mais ao longe fizeram duas pernas aparecer abaixo da linha da copa da árvore e subitamente um corpo todo caindo em direção ao chão, de cócoras e então de pé, seguindo em disparada rumo a cerca de arame farpado no fundo do quintal, já com o cachorro no seu encalço e ganhando terreno em relação à bunda do fujão.
Ele então voou, mergulhando em direção ao vão entre dois fios de arame da cerca como última alternativa e por eles passou ileso, caindo já do outro lado de barriga no chão.
Ao se levantar pude vê-lo por inteiro. Calças curtas brancas com riscas verticais de preto pendurada aos ombros por um suspensório de elástico de azul e vermelho e um cinto igual ao suspensório. Uma camiseta de mangas curtas, que deveria ter sido branca pela manhã, mas que agora mostrava uma enorme mancha roxa de jabuticabas, que se encontravam ensacoladas junto ao corpo e que se esmagaram quando da aterrissagem. Descalço.
Ao me ver, iluminou um sorriso moleque no rosto e caminhou em minha direção. Quando chegou bem perto é que fui capaz de reconhecê-lo, pois até então não tinha conseguido identificá-lo. Era um rosto velho conhecido, mas do qual já estava quase esquecido.
O rosto redondo, nem cheio nem magro, de pele muito clara e algumas sardas nas maçãs do rosto abaixo dos olhos e no nariz, sempre sorridente mostrando dois grandes dentes na frente. Os olhos castanhos esverdeados sorrindo junto com a boca. O cabelo aloirado, ou talvez “cor de burro quando foge” como dizia sua avó, bem liso e curto todo espetado e em desalinho. Duas orelhas destacadas e grandes completavam essa imagem de um menino. Um moleque feliz no todo.
Ao chegar bem perto de mim, espantou-se e começou a me medir de alto a baixo e então me disse:
- “Puxa vida! Como eu cresci”.
E então com aquele seu jeito sem jeito de fazer confidências e esconder que estava emocionado me disse baixinho junto ao meu ouvido:
- “Que bom, que você se lembrou de nós”.
Meninos sonham homens
Sobre
Talvez você seja redirecionado para outro site