?AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER?, diz o primeiro verso do soneto de Camões. Nos contos deste livro, os amores são ardentes e exibem sua chama. São des?medidos, urgentes, desenfreados, e por isso mesmo é que se oferecem ? ou melhor, se impõem ? à vista de todos. O que interessa é resgatar, pelo grito, a paixão reprimida, perdida ou recolhida. Tudo se revela por meio de explosões e de palavras cortantes, sangrentas, no melhor estilo de Marcelino Freire. Se amar é crime, conforme diz a canção popular, como evitar que uma escrita tão amorosa seja também fortemente agressiva, desmentindo todas as leis?
Negros, prostitutas, carroceiros, crianças, miseráveis, inocências pisadas, deslocados de todos os tipos, à margem da cidade que parece ignorar sua existência ? toda essa galeria de personagens, que já conhecíamos de outros livros do autor (João Gilberto Noll definiu-os como ?criaturas da deriva social?), reaparece aqui com renovada fúria. A pesquisa da linguagem oral e o manejo do discurso direto, marcas registradas da escrita de Marcelino Freire, se mantêm firmes. A despeito do humor, frequentemente grotesco, preserva-se também o registro poético, que não se resume ao uso ?cordelista? das rimas.
Embora solte farpas contra as rimas ? foi por causa delas, segundo o narrador do conto Irmãos, ?que o nosso país está o que está. Um horror!? ?, o autor de Amar É Crime não sabe viver sem elas. A rima é ostensiva, mas também aparece com sutileza, como na sequência das toantes ?rosa?, ?xoxota? e ?moda?, do conto Modelo de Vida, ou na série ?acorda?, ?porca?, ?gorda?, ?gosma?, do conto Mariângela. De toda maneira, trata-se de um recurso que visa não propriamente à poesia, mas à construção da oralidade, uma das fontes inesgotáveis da literatura brasileira, como temos visto em belas amostras desde o Modernismo.
Oralidade: eis a palavra-chave. A literatura de Marcelino Freire é erguida sobre falas, frases roubadas, pedaços vivos do cotidiano e da matéria social brasileira, que ele recolhe com inteligência crítica, a exemplo do que ocorre em autores como João Antônio e Francisco Alvim. E como falam os personagens deste livro! Desabafam o tempo inteiro e protestam com veemência mesmo quando estão calados, como a gorda do citado conto Mariângela, que matou a mãe por esta ter impedido a realização de seu primeiro amor. A gorda não fala: sua fala é o próprio corpo de 240 quilos, atravessado no meio do trânsito.
Os personagens de Amar É Crime são ?monstros? que despertam como vulcões, seres atolados que de repente resolvem ?voar? ? ou amar ? e saem pelas ruas aos gritos, reivindicando o que lhes foi recusado pela sociedade injusta e opressora. ?Hoje o mundo vai saber de mim?, diz o jovem protagonista de Crime. Chamar atenção, transformar o seu drama invisível em urgência notada por todos, é o desejo que move a maioria dessas criaturas. Outro bom exemplo é dado pela menina do conto Declaração, que foi seduzida pela professora: ?Vim para gritar. O meu amor, para todo o sempre, meu amor, seu juiz, sem fim. Ninguém consegue segurar este motim?
O impulso de afirmar o amor clandestino, em contraposição à cegueira da cidade (território da lei), que não tem olhos para vê-lo, aparece também no conto União Civil. Na paisagem imperturbável de São João Del Rey, a imagem epifânica de dois homens empurrando um carrinho de bebê parece ser vista apenas pelo narrador, que a mistura com cenas de seu próprio passado ? do seu criminoso amor infantil. Neste conto metalinguístico e densamente poético, o processo de construção da narrativa se confunde com os percalços da iniciação amorosa e da descoberta de si mesmo.
Com suas ações extremadas, os personagens de Marcelino Freire não querem apenas parar a cidade ? como quem desfila na avenida ou vê sua vida transformada em notícia escandalosa, em enredo de novela das oito. Querem a atenção de todos, sim, mas certamente porque seu drama não se limita ao indivíduo.