A oposição entre democracia e totalitarismo, ou entre democracia formal e democracia real, exprime as contradições internas à ideia democrática. Remontando a Platão, os paradoxos desta ideia são, por um lado, a denúncia da aparência do poder do povo e, por outro, a afirmação desse poder enquanto condição fundadora da política. O poder do povo é precisamente a condição que permite lutar contra a reprodução da dominação oligárquica, que hoje instaura o modelo gestionário de especialistas insensíveis aos desejos e à agitação das massas. O poder do démos não é, portanto, o poder de um grupo específico, mas sim o poder daqueles que não possuem um grupo para exercer o poder, isto é, de todos e qualquer um. Por isto, a democracia é a ideia de um poder que não pertence a ninguém e que não pode ser tomado em nome de nenhuma competência específica: «o princípio escandaloso da capacidade de qualquer um». Assim, contra a corporação que concentra as formas naturais do poder - nascimento, riqueza, força, ciência - nas figuras do partido, da lista eleitoral, da gestão estatal, da peritagem e do sistema mediático, a política democrática instaura uma capacidade partilhada que aqui é pensada como potência dissensual: é a potência que hoje pode desafiar o consenso oligárquico e a ideia de necessidade histórica. A promessa democrática compreende ainda a ideia de igualdade, não como um fim a atingir, mas antes como a sua verificação através da construção no presente de formas concretas de existência em todos os domínios da vida.
Dar um novo alcance à promessa democrática, é o que Jacques Rancière propõe com este «desmesurado» programa.