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    O coração disparado

    Por Adélia Prado
    Existem 13 citações disponíveis para O coração disparado

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    Vencedor do Prêmio Jabuti em 1978, esse livro consagrou a autora como a voz mais feminina da poesia brasileira. "O Coração Disparado" aprofunda um dos temas que se tornariam marca de sua obra: a religiosidade.
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    Citações de O coração disparado

    Quando o sol vai-se embora é pra casa de Deus que vai, pra casa onde está meu pai.

    Sobre o meu, pairam estas flores e sou mais forte que o tempo.

    Minha tristeza nunca foi mortal, renasce a cada manhã.

    Quarenta anos: não quero faca nem queijo. Quero a fome.

    De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo.

    A PROFETISA ANA NO TEMPLO As fainas da viuvez trabalham uma horta nova. Quem me condenará por minhas vestes claras? O recém-nascido vai precisar de faixas. É um tal amor o que prepara os unguentos que obriga a divindade a conceder-se. Até que esmaeçam, velo as coruscantes estrelas.

    REGIONAL O sino da minha terra ainda bate às primeiras sextas-feiras, por devoção ao coração de Jesus. Em que outro lugar do mundo isto acontece? Em que outro brasil se escrevem cartas assim: o santo padre Pio xii deixou pra morrer logo hoje, último dia das apurações. Guardamos os foguetes. Em respeito de sua santidade não soltamos. Nós vamos indo do mesmo jeito, não remamos, nem descemos da canoa. Esta semana foi a festa de São Francisco, fiz este canto imitado: louvado sejas, meu Senhor, pela flor da maria-preta, por cujo odor e doçura as formigas e abelhas endoidecem, cuja forma humílima me atrai, me instiga o pensamento de que não preciso ser jovem nem bonita para atrair os homens e o que neles ferroa como nos zangões. Meu estômago enjoa. Há circunvoluções intestinas no país. Queria que tudo estivesse bem. Queria ficar noiva hoje e ir sozinha com meu noivo assistir a Os cangaceiros no cinema. Queria que nossa fé fosse como está escrito: AQUELE QUE CRÊ VIVERÁ PARA SEMPRE. Isto é tão espantoso que me retiro para meditar. Espero que ao leres esta estejas gozando saúde, felicidade e paz junto aos teus.

    Se pudesse entender: o Filho de Deus é homem. Mais ainda: o Filho de Deus é verbo, eu viraria estrela ou girassol. O que só adora e não fala.

    PAIXÃO De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo. O mundo, cheio de departamentos, não é a bola bonita caminhando solta no espaço. Eu fico feia, olhando espelhos com provocação, batendo a escova com força nos cabelos, sujeita à crença em presságios. Viro péssima cristã. Todo dia a essa hora alguém soca um pilão: em vem o Manquitola, eu penso e entristeço de medo. ‘Que dia é hoje?’, a mãe fala, ‘sexta-feira é mistérios dolorosos.’ A lamparina bruxuleia sua luz já humílima, estreita de vez o pretume da noite. Comparece, no acalmado da hora, o zoado da fábrica em destacado contínuo. E meu cio que não cessa, continuo indo ao jardim atrair borboletas e a lembrança dos mortos. Me apaixono todo dia, escrevo cartas horríveis, cheias de espasmos, como se tivesse um piano e olheiras, como se me chamasse Ana da Cruz. Fora os olhos dos retratos, ninguém sabe o que é a morte. Sem os trevos no jardim, não sei se escreveria esta escritura, ninguém sabe o que é um dom. Permaneço no alpendre olhando a rua, vigiando o céu entristecer de crepúsculo. Quando eu crescer vou escrever um livro: ‘Pirilampos é vaga-lume?’, me perguntavam admirados. Sobre um resto de brasas, o feijão incha na panela preta. Um pequeno susto, ia longe a cauda da reza. Os pintos franguinhos não cabiam todos debaixo da galinha, ela repiava em cuidados. Este conto ameaça parar, represado de pedras. Só quaresmal ninguém suporta ser. Uma dor tão roxa desmaia, uma dor tão triste não há. A cantina das escolas e a ginástica musicada transmitida no rádio sustêm a ordem do mundo, à revelia de mim. Mesmo os grossos nódulos extraídos do seio, o cobalto e seu raio sobre a carne em dores, mesmo esses sobre os quais eu lançara a maldição: não lhes farei um verso; mesmo esses acomodam-se entre as achas de lenha, querem um lugar na crucificação. Foi cheia de soberba que comecei esta carta, sobrestimando meu poder de gritar por socorro, tentada a acreditar que algumas coisas, de fat

    o doce modo de ser um homem com netos. Minha tristeza nunca foi mortal, renasce a cada manhã. O óbito não obsta o repinicado da chuva na sombrinha, as gotículas, incontáveis como constelações. Vou atrás do pio cortejo, misturo-me às santas mulheres, enxugo a Sagrada Face. “Vós todos que passais, olhai e vede, se há dor tão grande como a minha dor.” ‘Que dia é hoje?’, a mãe fala, ‘domingo é mistérios gloriosos.’ O que tem corpo é a alegria. Só ela fica pendida, de olhos turvos e boca. Peito e membros magoados.

    ROÇA No mesmo prato o menino, o cachorro e o gato. Come a infância do mundo.

    SESTA O poeta tem um chapéu, um cinto de couro, uma camisa de malha. O poeta é um homem comum. Mas, quando diz: a tarde não podia tanger com “os bandolins e suas doces nádegas”, eu me prostro invocando: me explica, ó decifrador, o mistério da vida, me ama, homem incomum. No oeste de Minas tem um canavial, onde as folhas se roçam ásperas, ásperas as folhas da cana-doce roçam-se. Como agulhas bicando em vidro liso, o pio das andorinhas dentro da igreja deserta. Os trinados e as folhas cortam, entre as canas é doce, doce e fresco, entre os bancos da igreja. Repouso lá e cá, um poder em círculos me dilata, eu danço na mão de Deus. Na hora do encantamento, o reverso do verso dá sua luz: “os bandolins e suas doces nádegas”, um mistério santíssimo e inteligível.

    TEMPO A mim que desde a infância venho vindo como se o meu destino fosse o exato destino de uma estrela apelam incríveis coisas: pintar as unhas, descobrir a nuca, piscar os olhos, beber. Tomo o nome de Deus num vão. Descobri que a seu tempo vão me chorar e esquecer. Vinte anos mais vinte é o que tenho, mulher ocidental que se fosse homem amaria chamar-se Eliud Jonathan. Neste exato momento do dia vinte de julho de mil novecentos e setenta e seis, o céu é bruma, está frio, estou feia, acabo de receber um beijo pelo correio. Quarenta anos: não quero faca nem queijo. Quero a fome.

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