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    O fio das missangas

    Por Mia Couto
    Existem 12 citações disponíveis para O fio das missangas

    Sobre

    "A missanga, todos a veem. Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo."


    "A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as missangas." É assim que o donjuanesco personagem do conto "O fio e as missangas" define a sua existência. Fazendo jus a essa delicada metáfora, cada uma das 29 histórias aqui agrupadas alia sua carga poética singular à forma abrangente do livro como um todo - vale dizer, ao colar em questão. Com um texto de intensidade ficcional e condensação formal raras na literatura contemporânea, Mia Couto demora-se em lirismos que a sua maestria de ourives da língua consegue extrair de uma escrita simples, calcada em grande parte na fala do homem da sua terra, Moçambique, um pouco à maneira de Guimarães Rosa, ídolo confesso do autor.

    A brevidade das pequenas tramas e sua aparente desimportância épica estão focadas na contemplação de situações, de personagens, ou simples estados de espírito plenos de significados implícitos, procedimento típico da poesia. Os neologismos do autor, a que os leitores já se habituaram, para além de mera experimentação formalista revelam-se chaves fundamentais de interpretação da leitura.

    Não por acaso, a maioria dos contos de O fio das missangas adentram com fina sensibilidade o universo feminino, dando voz e tessitura a almas condenadas à não-existência, ao esquecimento. Como objetos descartados, uma vez esgotado seu valor de uso, as mulheres são aqui equiparadas ora a uma saia velha, ora a um cesto de comida, ora, justamente, a um fio de missangas. "Agora, estou sentada olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E parece que me sento sobre a minha própria vida", diz a narradora de uma dessas belíssimas "missangas" literárias.

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    Citações de O fio das missangas

    criancice é como amor, não se desempenha sozinha. Faltava aos pais serem filhos, juntarem-se miúdos com o miúdo. Faltava aceitarem despir a idade, desobedecer ao tempo, esquivar-se do corpo e do juízo. Esse é o milagre que um filho oferece — nascermos em outras vidas.

    Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei sentindo prazer em ter vergonha.

    Envelhecer é ser tomado pelo tempo, um modo de ser dono do corpo. E eu nunca amei o suficiente. Como a pedra, que não tem espera nem é esperada, fiquei sem idade.

    O que eu invejo, doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a exibir bem alto as suas queixas. A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras pára perante a dor falsa de um futebolista. As minhas mágoas que são tantas e tão verdadeiras e nenhum árbitro manda parar a vida para me atender, reboladinho que estou por dentro, rasteirado que fui pelos outros. Se a vida fosse um relvado, quantos penalties eu já tinha marcado contra o destino?

    Cozinhar não é serviço, meu neto — disse ela. — Cozinhar é um modo de amar os outros.

    E renovo promessa: sim, eu lhe escreveria uma carta, feita só de desabotoada gargalhada, decote descaído, feita de tudo o que ele nunca me autorizou. E nessa carta, ganharia coragem e proclamaria: — Você, marido, enquanto vivo me impediu de viver. Não me vai fazer gastar mais vida, fazendo demorar, infinita, a despedida.

    Ele se chegou e me beijou a testa. Como se faz a um filho, um beijo longe da boca. Meu peito era um rio lavado, escoado no estuário do choro.

    Era uma tarde boa para a gente existir. O mundo cheirava a casa. O ar por ali parava. A brisa sem voar, quase nidificava. Vez e voz, os olhos e os olhares. Ele, em minha frente, todo chegado como se a sua única viagem tivesse sido para a minha vida.

    Pobre não festeja por causa da alegria. A alegria é que nele se instala e faz a festa ter casa e causa.

    Assim, ele virá para renovar despedidas. Quando a lágrima escorrer no meu rosto eu a sorverei, como quem bebe o tempo. Essa água é, agora, meu único alimento. Meu último alento. Já não tenho mais desse amor que a sua própria conclusão. Como quem tem um corpo apenas pela ferida de o perder. Por isso, refaço a despedida. Seja esse o modo de o meu amor se fazer eternamente nosso.

    A meu homem deram transfusão de sangue. Para mim, o que eu queria era transfusão de vida, o riso me entrando na veia até me engolir, cobra de sangue me conduzindo à loucura.

    Contudo, a rima não gerava poema. Ao contrário, cumpria a função de afastar a poesia, essa que morava onde havia coração.

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