Escrito em 1987, a personagem mais importante de A Ressaca dos Anjos é seu inominado narrador, um ressentido funcionário público, inconformado com os hábitos e costumes provincianos da pequena cidade. Porém, ele mesmo tem o espírito estreito e tacanho, afeito ao fuxico e à intriga, ao mexerico e à maledicência, das pequenas cidades, com a agravante de, por ressentimento e despeito, viver à procura do lado vil e desprezível das relações sociais. Como ele mesmo confessa, passa os dias levantando dados para uma história secreta da infâmia da cidade, que nunca vai escrever. No entanto, narra o episódio vivido (ou desvivido) por Sílvia, uma jovem e brilhante estudante que, a convite dos tios, vai passar o carnaval em Santa Rita do Passa Quatro. E com essa narrativa, esse estranho personagem escreve, sim, como queria, uma história secreta da infâmia, não apenas da cidade, mas de um período da vida brasileira.
A trama se passa em 1.971, no período mais violento da Ditadura Militar Brasileira, sob o governo ufanista do General Emílio Garrastazu Médici. Tímida e inteligente, apegada e coerente com suas e com sua visão crítica e inconformada visão de mundo, ao chegar à cidade, Sílvia encontra um ambiente hostil à sua espontaneidade e ao seu pensamento crítico, pois é um ambiente de aceitação e bajulação da Ditadura Militar, um ambiente espiritual abafado e sufocado pela falta de liberdade e pela censura. Enfim, um ambiente em que as pessoas só conseguem sobreviver mediante a fuga e a mistificação da realidade. Por isso, naquele carnaval de 1.971 tudo acaba permitido, do abuso do álcool e do éter à liberação em público dos mais recônditos desejos e impulsos. Só não se desfaz a bajulação do poder estabelecido, seja lá quem for o seu detentor. Tanto assim que a ressaca vivida por esses anjos anos depois, com a queda da Ditadura militar, passa antes pela troca de lado, pelo alinhamento ao novo poder reinante que não se mostra tão diferente do anterior.
Romance cheio de personagens emblemáticos e caricatos, quase todos estereótipos sociais que se encontram em todas as pequenas cidades e que se tornam ainda mais caricatos e quase sem nenhuma humanidade, a ponto de Sílvia ter a sensação de que, naquele ambiente, não estava entre seres humanos, mas sim entre catetos e hipotenusas. Nesse aspecto, o romance capta bem o espírito de toda e qualquer ditadura que é capaz de lidar melhor com matemática e estatística que com seres humanos que os ditadores imaginam serem passíveis de receber o mesmo frio e lógico tratamento dos teoremas e das equações. Felizmente, na prática, esse saber formal sofre duros reveses quando seu objetivo é conformar o comportamento humano a uma engenharia cujo objetivo é edificar uma determinada sociedade; infelizmente, porém, sempre, antes do fracasso e do desmantelamento dos planos e objetivos ditatoriais seres humanos que não se enquadram no postulado desses teoremas espúrios acabam vítimas fatais. Foi o que ocorreu com Sílvia, com a ajuda de seus recém-conhecidos companheiros daquele interminável carnaval de 1.971, cuja ressaca ainda perdura até hoje.
Embora seja um romance com densidade psicológica e social, é antes um romance de clima e espírito social, pois, na verdade, o maior dos personagens é o amplo e irrestrito ambiente de intolerância e perseguição gerado pela Ditadura Militar Brasileira em seus anos de maior e mais forte repressão.
A Ressaca dos Anjos
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