Imaginemos um jogo entre pessoas cultas, em que cada participante eleja os dez maiores clássicos da literatura universal. Não importa o lugar, não importa a época, não importam as pessoas: o único título comum a todas essas listas será, necessariamente, o Livro das mil e uma noites. Embora seja uma obra essencialmente árabe, pelo espírito e pela língua, muita gente ainda parece obstinada em lhe apontar as ?fontes?, que vão buscar na Índia ou na Pérsia antiga. Com isso, negam aos árabes o mérito de uma de suas maiores criações.É curioso que esses mesmos sábios nunca tenham se preocupado em encontrar as fontes árabes de clássicos como o Decamerão, a Divina Comédia, o Poema de El-Cid, o Livro do Conde Lucanor e mesmo Robinson Crusoé ? todos eles recheados de histórias, argumentos e ideias preexistentes na literatura árabe. É, como se percebe, uma discussão estéril. Mas houve mesmo um livro persa das Mil noites (que infelizmente se perdeu); e, antes dele, um livro árabe das Mil noites, de que nos resta um quase ilegível fragmento. Estão neles as mais antigas referências a uma célebre contadora de histórias ? que adia, com sua arte, noite após noite, a própria morte. Falo, naturalmente, de Xerazade.Não é dela, contudo, a primazia. Velhos contos beduínos, que circulavam séculos antes, narram casos de condenados à morte que se salvavam contando histórias extraordinárias. Há nisso uma teoria bem sutil: a de que a vida humana só é comutável com a ficção; que o homem é, portanto, sua própria narratividade. Mas é uma circunstância aparentemente fortuita que faz das Mil e uma noites o mais árabe dos livros. Na longa história da composição e transmissão da obra, houve um momento em que certo copista (e talvez também autor) decidiu mudar o título de Livro das mil noites para o das Mil e uma noites. Criou, talvez, o título dos títulos. Mas, o que teria vindo à mente do copista, para pôr uma noite a mais num livro que já tinha mil?Desde os tempos pré-islâmicos, os árabes associam os múltiplos de dez à perfeição, à plenitude, a coisas que estão completas. E basta, como exemplo máximo, lembrar que Allah tem nada menos que cem nomes. O acréscimo da unidade a números como cem ou mil é, segundo o mesmo princípio, um signo do infinito. O Livro das mil e uma noites é, portanto, um título subversivo: se a perfeição divina pode estar contida no Alcorão, as Mil e uma noites são a tentativa de fazer a infinitude humana ser contida também num livro único.Há muito tempo a comunidade de língua portuguesa ? idioma que tanto deve ao árabe ? merecia uma tradução digna da grandeza do livro. Mamede Mustafa Jarouche acaba de concluir essa proeza. Nosso tradutor pertence a uma classe de intelectuais cada vez mais raros: a dos que são capazes de ir a bibliotecas do outro lado do mundo para compulsar manuscritos; que não apenas conhecem um idioma, mas dominam sua história; que não apenas estudaram uma literatura, mas sabem cabalmente inseri-la no imenso âmbito da cultura universal.Além de enriquecida com notas e apêndices que nos ajudam a compreender a gênese e os aspectos mais complexos do texto, esta tradução tem o mérito de recuperar todo o sabor do original, livrá-lo de todas as censuras, restituir sua sabedoria, sua licensiosidade e, principalmente, o seu bom-humor.*Alberto Mussa é escritor e tradutor. O texto acima integra o quarto volume do Livro das mil e uma noites.
Livro das Mil e Uma Noites – Vol. 4
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