As duas novelas que compõem este livro faziam parte de Corpo de baile, livro de João Guimarães Rosa que, em sua 3ª edição, foi dividido em três volumes independentes: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do sertão.
A primeira delas, ?Campo Geral?, conta a estória de ?um certo Miguilim? que ?morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, muito longe daqui?, no Mutúm, no meio dos Campos Gerais. A novela retrata seu mundo infantil, povoado de entes e palavras, ainda sem a rigidez de um universo sistemático, onde, a cada dia, ele tenta entender a vida (?Dito, como é que a gente sabe certo como não deve de fazer alguma coisa, mesmo os outros não estando vendo??), com a ajuda dos brinquedos inventados, dos bichos, das outras crianças, dos adultos e, sobretudo, das estórias que inventa.
A segunda, ?Uma estória de amor?, narra os preparativos e a festa de consagração de uma capela construída por Manuelzão, administra dor da Samarra, um lugar ?nem fazenda, só reposto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais?. Toda a novela desenvolve-se em torno de um levante de boiada, que serve de ligação entre as cenas e de imagem para o próprio povo em festa; e, como num acampamento de vaqueiros, uma travessia se perfaz quando a estranheza de um acontecimento (a festa) remete Manuelzão a um mundo em que ?tudo virava outro?, e ele descobre também uma vida que não viveu, que não sabia.
À infância de Miguilim reúne-se a velhice que Manuelzão sente chegar e que traz um outro recomeçar: ?De todo não queria parar, não quereria suspeitar em sua natureza própria de um anúncio de desando, o desmancho, no ferro do corpo. Resistiu. Temia tudo da morte.? A mesma morte que ronda as crianças nos lugarejos distantes, onde não há recursos. O mesmo medo de se ir para o escuro da mata, sozinhos, debaixo de chuva, a gente sempre pequenos. As duas novelas complementam-se: enquanto a do menino é uma constante e por vezes dolorosa des coberta do mundo e das relações entre as pessoas e as coisas, a do velho vaqueiro é um relembrar (redescobrir) também por vezes doloroso do que é a vida, como se, de tão acostumado com ela, ele houvesse esquecido sua dinâmica e se deparasse de novo com a sua ?espantante? novidade.
Abordando, na infância e na velhice, o começo e o fim não só da vida propriamente dita como de tudo o que existe ou acontece, este livro apresenta uma densidade e uma elaboração que são evidentes, mesmo em observações absolutamente infantis: ?Miguilim não tinha vontade de crescer, de ser pessôa grande, a conversa das pessôas grandes era sempre as mesmas coisas secas, com aquela necessidade de ser brutas, coisas assustadas.? Os episódios sucedem-se dentro de uma lógica narrativa, em que se vai revelando-lhes a função simbólica a cada leitura ? porque, como todos os livros de Guimarães Rosa, Manuelzão e Miguilim é para ser lido muitas e muitas vezes, sempre com renovado prazer e, principalmente, com renovados olhos.